quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Por Paulo Barreiros


Fico-te grato por teres publicado mais um texto da minha autoria. É uma honra. Não obstante, é difícil subscrever o modo como anunciaste a minha crónica de protesto. Eu sei que é para acicatar as consciências dos teus compatriotas, mas quero continuar a olhar as pessoas muito para além das nacionalidades. Aliás, estou convicto que a religião e o nacionalismo (sobretudo quando estão em sinergia) há demasiado tempo que são dos piores flagelos da humanidade.
É igualmente óbvio que ninguém é melhor do que outrem só porque – acidentalmente – nasceu num lugar diferente do que aqueles que vitimiza com discriminação xenófoba; assim como ninguém é bom/boa demais para a biorregião que nasceu e/ou habita.
Devo ainda ressalvar que não concordo com o conhecido ecólogo Fábio Olmos quando ele coloca todas as comunidades indígenas no mesmo saco, classificando-as de <<anacrônicas, devendo ser conservadas em DVD, não dentro de áreas protegidas>>(sic). Olmos tem razão em muitas das suas acusações, mas é preciso separar o trigo do joio.
Acredito que os povos tribais poderão ter as respostas que precisamos para salvar a humanidade de tanta insanidade ecocída. Desde garoto que tenho apoiado muitas lutas de reivindicações territoriais, contra violações dos direitos humanos mais fundamentais. Os mídia não o referem, mas, ainda hoje, a maioria dos conflitos armados no mundo são protagonizados por pequenos grupos étnicos tentando sobreviver à constante agressão da civilização predatória.(Aconselho a que se tornem membros da ONG Survival for Tribal Peoples, ou, pelo menos, apoiem as suas campanhas fundamentais)
Temos, os ditos civilizados, uma enorme dívida moral junto dos povos que os europeus usurparam os territórios, massacraram, violaram, escravizaram e exploraram de muitas formas ignominiosas que certamente foram – e continuam a ser – crimes contra a humanidade e contra o planeta.
Salvo raríssimas exceções, as cidades nada produzem para o seu sustento; são monstros, cânceres que produzem quantidades ingentes de resíduos; poluição grave para todos os desgostos. Os citadinos (mais de metade da população mundial), regra geral, sobrevivem financeiramente através do trabalho imaterial, sem verem uma saída na escravidão assalariada. Cada ida ao supermercado mais próximo (mesmo os que se podem dar ao luxo de consumir da prateleira dos “produtos naturais” e posar de ambientalistras) contribui para a destruição de proporções apocalípticas da natureza (ex.: o agronegócio que toma conta do Cerrado e até da Amazónia; os milhares de km que viajam os produtos; os rios poluídos pelos agroquímicos;a indústria petrolífera; as embalagens; os custos da saúde pública; as assimetrias sociais, etc, etc...). É gravíssimo esse nosso distanciamento das fontes de alimento e a terceirização das responsabilidades sócio-ambientais, “varridas para debaixo do tapete”, mas que é inevitável que acabemos por pagar o pior preço.
O impacto ambiental desse estilo de vida é bem maior do que quantiosas comunidades rurais que cultivam hortas e até praticam a caça e a pesca de sobrevivência nas redondezas.
Mas aqui no Brasil abundam os abusos fraudulentos e grotescos em nome de comunidades tradicionais fajutas (sejam índios, quilombolas, caiçaras e quejandos), geralmente corrompidas. E tudo com a chancela da antropologia cultural, pois há sempre um antropólogo à procura de fazer nome e escalar a carreira académica que, sem bases científicas para tal, “legitima” pretensões descabidas. São por demais forçados os traços identitários por eles descritos. (Claro que também estão à espera que uma percentagem dos subsídios reclamados constantemente pelas comunidades tradicionais “chova nos seus quintais”...)
Certamente que existem muito mais funcionários corruptos do IBAMA e da FUNAI do que índios (como o Paulinho Paiakan, por ex.) que enriquecem com a venda ilegal de produtos da selva.
Os índios que referi nas <<crónicas caiçaras>> pertencem a uma comunidade que, segundo me contaram, tem uma origem recente e engraçada. Quando fizeram um filme sobre o jesuíta Anchieta, os responsáveis precisaram de muitos figurantes índios. Como nesta região quase não existiam índios (nem sequer com um fenótipo supostamente “puro”, muito menos praticantes de um modo de vida ancestral), foram buscar famílias a muitos lugares ao longo do litoral. Terminada a rodagem do filme, esses índios figurantes acabaram por ficar juntos numa aldeia, miscigenando e homogeneizando uma constelação de etnias e raízes biogeográficas que se encontravam algo atomizadas e perdidas. Logo aprenderam a reivindicar direitos territoriais, à laia dos quilombolas. E porque não? A priori, até parece um projecto de comunidade alternativa interessante. Só que a realidade nestes casos se apresenta como uma pílula difícil de dourar pelos indigenistas e eco-românticos...
Mal conheço a referida aldeia indígena, mas já passei nas suas imediações e deu para perceber a quase ausência de mamíferos silvestres nas redondezas (tal como acontece nas serranias que os espingardeiros caiçaras adentram); o abate das maiores árvores no interior da mata; e até a comédia extorsionista do cacique que, quando está podre de bêbado (o que me dizem ser habitual), pega no facão e vai ao encontro dos ecoturistas (que percorrem uma trilha próxima à aldeia) pretendendo cobrar pedágio... eles têm os mesmos sonhos consumistas dos urbanos.
A última vez que falei com uns meninos índios que saem da sua aldeia para acompanhar os adultos na venda de palmito e de orquídeas na feira de peixe da cidade onde moro, o único garoto que falava português, ao reparar no meu interesse pelas aves, disse-me para ir visitá-lo pois ele tinha muitos bichos em casa. Perguntei-lhe que bichos eram esses, e ele foi expedito na resposta: tucanos, araras, macacos, porco-do-mato, capivara, paca, tatu,... Adiantou que eram para venda; que eles estavam cheios de encomendas (até de pessoas de São Paulo) de animais silvestres comestíveis e de aves coloridas para o Natal...
Questionei-o ainda se já tinha visto onças. Ele respondeu que, mais do que observações fugazes, ele e a sua galera já tinham capturado onças em armadilhas – há ainda quem compre as peles, outros querem filhotes para criar. Até me disse que a última onça que vendeu para criação foi a uma tal Joele/joell (seja lá como aqui escrevem esse nome), de Jaraguá. (Não creio que o guri estivesse mentindo, até porque ele se mostrou interessado em que eu me tornasse mais um dos seus clientes, compactuando com um negócio execrável.)
Estes casos multiplicam-se entre comunidades “tradicionais” de índios, quilombolas e caiçaras.
A impunidade é total

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